quinta-feira, 19 de maio de 2011

Cidadania e Competitividade: Desafios Educacionais do Terceiro Milênio

Guiomar Namo de Mello

São Paulo, Ed. Cortez, 1994.
Prefácio de Simon Schwartzman
Educadora, pesquisadora, ex-secretária municipal da educação da cidade de São Paulo, ex-deputada estadual, assessora de projetos de reforma educacional no Brasil e no exterior, Guiomar Namo de Mello percorreu todos os caminhos que vão da sala de aula à organização dos sistemas educacionais, dos movimentos políticos contestatários às dificuldades do gerenciamento governamental, das teorias abrangentes sobre os problemas sociais e culturais do ensino aos estudos mais detalhados sobre o que passa no dia a dia na relação dos professores com seus alunos. Nesta travessia, suas idéias e percepções se alteram, mas, como ela nos diz na apresentação deste livro, não mudam suas preocupações, o compromisso com a necessidade de encontrar uma saída para as questões da educação brasileira, e a certeza de que, em última análise, é no contato direto do aluno com o professor, na sala de aula de onde partiu, que a batalha do ensino será vitoriosa ou perdida.

O entendimento que Guiomar Namo de Mello possui hoje da questão educacional, mais do que o resultado de um amadurecimento pessoal, corresponde a um consenso crescente entre os especialistas a respeito da natureza dos problemas educacionais em países e regiões menos desenvolvidas, e dos principais caminhos para sua superação. A existência deste consenso ainda não penetrou, como deveria, os sistemas educacionais como um todo, e por isto este livro deve provocar polêmica. Pela polêmica as idéias irão ecoando, chamando atenção para questões pouco entendidas, dissolvendo suposições e certezas empedernidas, e consolidando aos poucos um novo consenso com força suficiente para se impor, abrindo novos caminhos e perspectivas.
O primeiro ítem deste novo consenso é a importância estratégica fundamental da educação básica, sem a qual não seria possível tirar o país de uma situação de crescente marginalidade em relação ao mundo moderno. Há cada vez menos lugar, hoje, para economias baseadas no trabalho desqualificado e mal pago, na exploração abusiva dos recursos naturais e na produção de mercadorias massificadas e de má qualidade. Não se trata somente, pois, de que a educação tenha um papel central na formação da cidadania, dos valores morais e da capacitação das pessoas para uma vida digna e produtiva, como pensavam os educadores e líderes religiosos e políticos desde o século passado, que presidiram a universalização da educação básica nos países europeus. Nem de que a educação seja um simples correlato de estruturas e sistemas econômicos, gerando os profissionais que necessita em uns casos, mantendo as pessoas ignorantes em outros, e reproduzindo de forma inexorável suas desigualdades e mecanismos de exploração. Os vínculos entre a educação e a economia são tão ou mais fortes do que se imaginava no passado, mas a relação causal pode ser distinta. os sistemas educacionais, e a educação que as pessoas recebem, não são simples conseqüência do que ocorre na economia. Eles podem ser melhorados e transformados, e seu impacto econômico pode ser extraordinário.

O segundo ítem do consenso é a revalorização do processo de aprendizagem enquanto tal, e dos problemas relacionados a ele. A crítica à escola convencional se faz, usualmente, em relação a dois aspectos, a condição sócio-econômica dos estudantes, escolas e professores, e os conteúdos esvaziados e burocratizados dos procedimentos educativos. É claro que estudantes com fome e frio, forçados a trazer de qualquer forma algum dinheiro para a casa, sem uma estrutura familiar minimamente constituída, sem escolas ou em escolas caindo aos pedaços, e com professores ganhando salários de fome, não teriam como se beneficiar das melhores pedagogias. Daí a preocupação com a merenda escolar, com os serviços de assistência médica e odontológica, com a construção e a reforma de prédios, e com a melhoria dos salários dos professores. Daí, também, a preocupação com o contexto econômico e político mais amplo, do qual depende o emprego dos pais, o salário dos professores e o financiamento das escolas. Mas nem todos os estudantes vivem em situações tão extremas, nem todas as escolas estão tão destruídas, nem todos os professores ganham tão mal, nem todos os orçamentos educacionais são assim tão pequenos; e mesmo assim os resultados das escolas costumam ser desastrosos. A ênfase nos aspectos assistenciais e quantitativos da educação decorre, em muitos casos, de equívocos profundos, ou de interesses políticos e econômicos pouco confessáveis. Nem todas as crianças necessitam de merenda paga pelo governo, em muitas das principais regiões do país sobram escolas e professores no sistema público, mas existe uma indústria da merenda, da construção de escolas e do uso das verbas educacionais para fins político-partidários.
A nova ênfase nos problemas de conteúdo e de qualidade da educação foi reforçada, recentemente, pelos estudos e pela verdadeira cruzada pessoal de Sérgio Costa Ribeiro contra os conceitos tradicionais sobre evasão escolar, e em prol de um exame aprofundado dos problemas da repetência escolar. Por sua importância, não custa repetir os principais ítens desta cruzada. Exceto em alguns pontos isolados, o problema do acesso à escola não existe mais no país. Existem vagas suficientes, as crianças vão à escola, e normalmente permanecem nela até os 14 anos pelo menos. Seu aproveitamento, no entanto, é um desastre. Metade repete o primeiro ano, poucos conseguem concluir as oito séries da educação básica, e aprendem muito pouco das habilidades essenciais de leitura, escrita e aritmética elementar. Existe algo profundamente errado dentro da sala de aula, que faz com que os estudantes passem dias e anos em instituições que lhes dão muito pouco, e terminam, em muitos casos, por estigmatizá-los pelo fracasso e pela repetência.

Se sabemos agora aonde está o problema, existe menos acordo sobre sua verdadeira natureza, assim como sobre suas causas. A escola convencional tem sido criticada pelo seu conteúdo de classe, ao buscar transmitir aos estudantes mais pobres os valores, uma cultura e mesmo uma linguagem que não lhes são próprias, e sim das classes médias e altas com as quais os professores se identificam; e pelo próprio caráter opressor e impositivo embutido nas relações professor-aluno. Por isto os estudantes se desinteressariam, e não conseguiriam entender o que lhes é ensinado; ou, mesmo que aprendessem, isto lhes serviria de pouco. Daí as propostas revolucionárias: transformar cada professor em um militante, em um agente de transformação; substituir os conteúdos convencionais por elementos da realidade quotidiana do estudante; ensiná-lo em sua linguagem própria, pesquisada em cada caso, sem forçar um padrão erudito que lhe é alheio; e, no extremo, fechar a escola convencional, e transferir as funções educativas para a relação quotidiana da criança e do jovem com seus pais, vizinhos, e com os líderes de suas comunidades. Ou, de maneira menos radical, substituir a transmissão formalizada de conhecimentos por processos indutivos que estimulem a criatividade, o interesse e a iniciativa do estudante.

O consenso atual é que todas estas críticas contêm elementos de verdade, mas que as soluções apresentadas não parecem levar muito longe. Comparações entre experiências educacionais de diferentes países e grupos sociais ajudam a entender melhor o que ocorre. Filhos de imigrantes constumam ser mais bem sucedidos nas escolas do que muitos nativos, mesmo com grandes diferenças de língua e de cultura. Negar aos estudantes o ensino do padrão erudito da língua pode confiná-los em guetos étnicos e sociais, e impedir sua participação plena na sociedade mais ampla. A escola deve transmitir ao estudante uma tradição cultural pre-existente, consubstanciada não só em uma linguagem estruturada, mas também em um conjunto de informações compartidas por todos os membros de uma comunidade. Daí a necessidade de currículos estruturados, métodos pedagógicos afirmativos. O conhecimento se organiza em disciplinas, e isto deve ser transmitido ao estudante. A autoridade do professor em relação ao aluno não tem porque ser vista como autoritária; o professor é, efetivamente, mais velho, mais experiente, sabe mais, e deve constituir, para o aluno, um modelo e um exemplo que ele espera, e cuja falta ressente.

Ainda que possam haver discordâncias quando a aspectos específicos das pedagogias e dos formatos mais adequados para uma educação bem sucedida, todos concordam que a escola tem que ser um ambiente agradável e receptivo, e o professor deve estar presente, motivado, ter tempo e condições de trabalhar com os estudantes, e dispor de materiais pedagógicos adequados. É possível dizer que, se estas condições estiverem dadas, a educação é bem sucedida com praticamente qualquer pedagogia que seja utilizada, para a grande maioria dos estudantes. Como é possível fazer com que a escola tenha estas características?

É aqui que entra a verdadeira revolução copernicana que Guiomar Namo de Mello discute na segunda parte deste livro: se trata de colocar a escola - e não mais o governo, a secretaria de educação, os professores, ou mesmo os estudantes e suas famílias - na liderança da atividade educacional. Isto significa dar à direção das escolas a liberdade, as condições e os estímulos para tomar iniciativas, zelar pelo funcionamento quotidiano da instituição, buscar apoio e recursos na comunidade mais ampla. É esta a verdadeira descentralização educacional que deve ser feita, muito diferente da transferência de responsabilidades dos estados aos municípios: se trata de transferir verbas e poder de decisão sobre currículos, orientações pedagógicas e seleção ou demissão de professores às próprias escolas, e mais especialmente à sua direção.
Mas quem garante que a direção das escolas fará bom uso destes recursos? Existem dois mecanismos para isto, sem os quais todas as experiências de autonomia das escolas correm o risco de fracassar. Primeiro, é necessário que os resultados do trabalho das escolas sejam constantemente avaliados segundo critérios bem definidos e comparáveis, para que todos - direção, professores, estudantes, famílias, comunidades, governo - saibam o que está sendo conseguido ou não; e segundo, que todos os participantes sejam informados dos resultados desta avaliação, e estimulados a estimular e influenciar as escolas para que obtenham resultados cada vez melhores. A autonomia das escolas deve ter dois parâmetros simultâneos, um dado pelos sistemas de avaliação comparada de resultados, que deve ser promovido pelos governos, e outro pelo controle da comunidade, que deve ter condições de exigir resultados e mesmo, quando fôr o caso, forçar a mudança na direção das escolas. O instrumento fundamental para a avaliação dos resultados das escolas são os testes padronizados de conhecimento, que podem ser aplicados tanto a estudantes quanto a seus professores. Devidamente utilizado, um sistema de testes permite identificar resultados positivos e áreas mais problemáticas, dirigir recursos para onde sejam mais necessários e premiar o bom desempenho. Existe muita polêmica sobre o uso de testes nos sistemas educacionais, que não seria o caso de reproduzir aqui. Basta dizer que, como a democracia, os testes são instrumentos problemáticos, mas são insubstituíveis se quizermos saber aonde estamos, e que caminhos devemos seguir para sairmos da situação extremamente crítica em que se encontra na educação brasileira. Nada disto é simples, mas tampouco chega a ser novidade para os países que já conseguiram ou estão conseguindo superar os impasses mais graves da educação básica. A revolução copernicana aqui proposta não significará o fim de nossos problemas, mas o ingresso em um outro patamar de realizações, questões e dificuldades, para os quais a competência profissional, o talento e a dedicação de Guiomar Namo de Mello, e de tantas outras educadoras e educadores que ela representa, continuarão sendo indispensáveis.

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