sexta-feira, 13 de maio de 2011

"O projeto político-pedagógico tem que ter a cara de cada escola"

Na entrevista a seguir, a professora Ilma Passos de Alencastro Veiga fala da construção do projeto político-pedagógico. Ela defende que, sem a participação de alunos, professores, pais e comunidade, nenhuma reformulação do projeto político-pedagógico está completa.
Não é todo dia que se recebem boas notícias do Congresso Federal. Mas as do dia 20 de junho contrariaram os pessimistas. Em cerimônia na Câmara dos Deputados, a Fundação Abrinq destacou, com o Prêmio Prefeito Criança, cinco entre os vinte municípios finalistas que têm se esforçado para criar soluções em favor de uma infância mais feliz.
 Caarapó (MS) foi um dos municípios laureados. Ao virar de ponta-cabeça sua rede de ensino, formando professores indígenas e adotando um currículo diferenciado, a cidade viu o índice de aprovação escolar aumentar 260% em três anos.
Entre os 20 finalistas, uma pequena cidade cearense mostrou que tinha algo em comum com a terceira região metropolitana do país, Belo Horizonte. Em Aracati (CE), cada escola elabora seu próprio projeto pedagógico com a ajuda de alunos, pais e funcionários. Algo semelhante ocorre em Belo Horizonte: o programa Escola Plural.
As três cidades são exemplos de uma revolução silenciosa por que passa a educação brasileira. A professora Ilma Passos de Alencastro Veiga tem estado de olhos bem abertos para isso. É ela quem afirma que a reformulação do projeto político-pedagógico não é exclusiva do ensino público. "Uma coisa que tem me chamado muito a atenção é o crescente interesse da rede privada em construir uma escola de qualidade a partir de um projeto pedagógico."
 Por falta de tempo livre em sua agenda, ela chega a recusar convites de escolas de todo o Brasil para debater o tema. São eventos que podem reunir até 1.000 professores, como aconteceu este ano em Faxinal do Céu (PR). Ilma Veiga tem um ritmo de trabalho pra lá de intenso para uma professora aposentada. Além de seis pesquisas em andamento na UnB, na área de formação de professores, ela é professora visitante da Universidade Federal de Uberlândia (MG).
 Em sua cartilha, projeto político-pedagógico rima com o envolvimento de professores, alunos e suas famílias na administração das escolas. Ilma Veiga dá um zero à escola padronizada e ao tratamento das disciplinas do currículo de forma isolada. Antes que viajasse ao Piauí para mais um debate, o Educacional lhe perguntou se ela estava em uma verdadeira cruzada pela reformulação dos projetos político-pedagógicos. Ao que ela respondeu sorrindo: "É, estou correndo bastante."
 Inúmeras escolas de todo o Brasil têm-se dedicado a rever suas práticas pedagógicas, com excelentes resultados. Até que ponto isso se deve aos avanços da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)?
 Ilma Passos - O artigo 12 da LDB fala claramente que é incumbência da escola elaborar o seu projeto pedagógico. Os artigos 13 e 14 colocam nas mãos dos professores, supervisores e orientadores a responsabilidade de participar da elaboração desse projeto. Com essa incumbência prevista no artigo 12, ela está ampliando o conceito da escola para além da sala de aula e além dos muros da escola. Você tem que criar uma proposta pedagógica para desenvolver no aluno a cidadania, a sua capacidade de ser como pessoa e a capacidade para o trabalho. Isso implica em uma escola inserida em um contexto social e que procure atender às exigências não só dos alunos, mas de toda a sociedade.
 A senhora entende que a LDB amplia o conceito de escola para além de seus muros. Como a senhora vê as ações que visam aumentar a participação da comunidade nas escolas?

Ilma Passos - A legislação coloca coisas excelentes sobre a aproximação da família com a escola, mas se esquece dos mecanismos necessários à sua operacionalização. Quando ela fala da responsabilidade da escola em articular família e comunidade, isso implicaria em um atendimento integral, que o professor fosse contratado para ficar 40 horas em uma só escola, que a criança pudesse voltar em outro turno para aprofundar sua escolaridade. Mas o professor é contratado como horista, na maioria das vezes. Não tem um contrato dizendo que ele deve ter 25 horas em sala de aula e 15 horas para dedicação extraclasse. Vamos pensar em um professor de uma criança da 3.ª série que trabalhe das 7h às 12h. Ao meio-dia, ele sai correndo para outra escola. E você sabe que os pais não têm tempo de ir à escola durante a semana, principalmente se eles forem de classes populares, se eles forem operários e domésticas.

Como um educador como esse que a senhora citou vai poder conciliar a criação de uma nova proposta pedagógica e suas atividades de ensino?
Ilma Passos - A grande problemática do professor hoje é que ele tem um salário baixo e trabalha muito. Ele tem péssimas condições de trabalho, com salas superlotadas. Ele fica na escola exercendo a profissão apenas com sua formação inicial. Ou seja, se ele detém o diploma de curso normal, ele já começa a trabalhar. Ele não tem tempo, e muitas vezes dinheiro, para freqüentar uma universidade; ele não tem dinheiro para comprar livros. Se ele tem um curso superior - suponhamos, é formado em Pedagogia -, praticamente ocorre a mesma coisa. Ele dá aula de manhã, à tarde e à noite. Então, o que está fazendo a defasagem desse professor não é só a questão da má formação. Ele se desqualifica dentro do processo de trabalho, sua formação tende a se deteriorar no exercício da profissão. Você pode até fazer um projeto com concepções bonitas, mas na hora de operacionalizá-lo o professor não consegue colocar na prática aquilo que a teoria recomenda. O resultado é um projeto que fica na prateleira, que foi feito apenas para cumprir uma função ou solicitação da Secretaria de Educação ou do próprio MEC. É um projeto feito apenas para cumprir uma tarefa burocrática.

É esse tipo de coisa que acaba barrando a implantação de um novo projeto pedagógico. Como se pode contornar essa situação?
 Ilma Passos - Certa vez, eu ia dar um curso sobre projeto político-pedagógico em um CAIC de Patos de Minas (MG). O curso levava três dias e eu precisava de todos os professores e funcionários nesse período. Então a diretora me disse: "Só que eu não posso dispensar as crianças por três dias." Mas não adianta fazer um projeto sem ter um ponto de partida comum, definindo o que todos querem da escola. Sem isso, você não consegue o compromisso de todos na execução dos objetivos definidos. Depois de uns dias, a diretora me ligou dizendo que tinha conseguido articular um mecanismo que iria dar certo, sem ferir as orientações da Delegacia Regional. Ela foi a uma instituição de ensino superior da cidade e, junto com a faculdade, montou um esquema para que os alunos de licenciatura assumissem as aulas durante os três dias.

Além de levar em conta o exercício profissional de educadores, os novos projetos pedagógicos enfatizam muito a importância das diferenças regionais, até a questão da educação indígena. A senhora acredita que se tem contemplado a evolução da família e da sociedade brasileira?
 Ilma Passos - Nessa articulação entre escola e família, a gente tem que entender que a família hoje não é a mesma, a estruturação familiar difere da de antigamente. Você não tem mais pai, mãe, avô, tia morando na mesma casa ou nas proximidades. Nós temos hoje a família “monoparental”: são os filhos com a mãe ou o pai. Além da reestruturação familiar, nós encontramos também a mulher saindo para o trabalho, a mulher como mão-de-obra, e no momento em que ela sai para a sobrevivência ela deixa de atender os filhos. Quando você mora no interior, a vizinhança até ajuda a olhar os filhos de mães que se afastam para o trabalho, mas com o movimento da sociedade mais ampla, com as populações muito numerosas, aquela relação de vizinhança foi quebrada. Os filhos de pais com poucos recursos ficam mais relegados aos irmãos mais velhos.
A senhora frisa que a definição dos novos rumos da escola depende, além dos professores, do envolvimento de todos os que compõem a escola em uma administração colegiada. Como isso pode ser feito?
 Ilma Passos - A primeira coisa que as escolas têm que fazer é incorporar a idéia da gestão democrática, de administração colegiada. Dessa forma, a escola é administrada com representantes do corpo docente, dos estudantes, dos funcionários e da direção da escola. E teríamos também representantes dos pais e da comunidade dentro do conselho de classe. Com cada segmento tendo a sua representatividade, você poderia pensar em um segundo momento, em que cada segmento estaria individualmente tentando articular suas decisões no colegiado.
 Como as Associações de Pais e Mestres poderiam se enquadrar nessa reforma?

Ilma Passos - Além do conselho de escola, você pode ter outras instâncias colegiadas. Nós temos também a APM (Associação de Pais e Mestres), uma associação que congrega os pais dos alunos e cujo presidente é eleito por eles. Essa também seria uma forma de aproximar a escola da família. Só que a gente percebe algumas distorções no papel da APM. Se ela tem um papel de acompanhamento do processo educativo, sob o olhar dos pais, muitas vezes ela se transforma em instrumento para angariar fundos para a manutenção da escola.
 Que experiências bem-sucedidas nessa área a senhora destacaria?

Ilma Passos - Aqui em Brasília, nós temos o Centro Educacional Norte, que funciona próximo à UnB e desenvolveu um projeto pedagógico extremamente bom, com a associação funcionando, com os conselhos de classe colegiados e com a representação estudantil restabelecida. Hoje a gente já tem essa liberdade de resgatar a representação estudantil, que foi abafada no período da revolução. Antigamente os grêmios eram centros cívicos e estavam muito voltados para a Educação Moral e Cívica. Essa escola funcionava bem, mas hoje eu estou um pouco distanciada dessa experiência.
Que reformas um novo projeto político-pedagógico pode propor na forma de tratar os conteúdos programáticos?
 Ilma Passos - O currículo é totalmente estanque. A Matemática não articula com a Física e a Química. A História não articula com a Geografia. Então o que o aluno recebe como formação? Algo extremamente fragmentado, e ele não consegue estabelecer as relações entre os diferentes campos do conhecimento. Por que o professor de História não pode estudar a situação geográfica e física de uma região dentro de um período histórico? Por que o professor de Língua Portuguesa, quando está trabalhando Literatura, não articula o texto com a história do Brasil Colônia? O conteúdo do currículo é trabalhado de forma totalmente isolada. Se todos os professores de Língua Portuguesa tivessem um tempo da semana para trabalhar em conjunto, nós evitaríamos muitos fracassos e repetições. Muitas vezes, os professores da 5.ª série não sabem direito o que foi visto nos quatro primeiros anos do ensino fundamental.

Como os PCN podem se inserir em um projeto pedagógico mais voltado à vida e ser uma alternativa à “pedagogia da cópia”, citando um termo que a senhora costuma usar?

Ilma Passos - Os PCN são um projeto neoliberal organizado por um grupo de professores que vem de escolas de certa forma privilegiadas, e não da escola pública. Então, se os PCN vêm no bojo de uma política globalizada, a visão é de padronização da escola. Se eles montam um programa e soltam para as escolas de norte a sul, de leste a oeste, sabendo que nós temos no país cinco regiões totalmente diferentes, evidentemente que se quer padronizar as escolas. Os PCN trazem um discurso de proposta e, como proposta, a escola não é obrigada a fazer. Só que quando se coloca, por trás dessa proposta, um esquema de avaliação, ela se torna um instrumento autoritário, porque a escola tem que cumprir, entre aspas, essa proposta. E, se a avaliação não considera o processo, evidentemente que as escolas brasileiras vão ser improdutivas, porque você não dá condições para que elas atinjam o produto previsto nos PCN.
 A senhora está dizendo, então, que os PCN estariam em contradição com a LDB?

Ilma Passos - De certa forma, sim. Se a LDB diz que compete à escola criar o seu projeto pedagógico e o governo solta uma proposta chamada PCN, quase que impingindo às escolas a padronização, então isso é contraditório, sim. O projeto político-pedagógico busca a escola singular. O projeto tem que ter a cara de cada escola, não tem que ter cara nacional.
 Mas a escola pública não deve justamente universalizar as oportunidades, procurar oferecer a mesma formação a todos os alunos e contribuir para que eles, como cidadãos, tenham os mesmos valores?
 Ilma Passos - Existe uma diferença entre universalizar as oportunidades e padronizar as escolas. Universalizar as oportunidades significa abrir vagas a todos e democraticamente fazer com que os alunos permaneçam na escola dos 7 aos 14 anos. Esse é o ideal democrático da permanência. É a qualidade da escola para todos. Pegue dois sistemas de ensino privado bem grandes no país. O Objetivo tem a sua cara. Quando alguém fala "eu estudo no Objetivo", você tem delineado o padrão de aluno que vai ser formado ali. Quando você fala no Colégio Pitágoras, que é uma rede enorme de Belo Horizonte, você tem delineado também um projeto político-pedagógico, que difere daquele do Objetivo. São escolas particulares que construíram sua identidade a partir dos interesses da escola e das necessidades dos seus alunos, que são alunos de classe média para cima. Ali você não encontra alunos de classes populares. São dois sistemas de ensino - eu diria - de boa qualidade em duas escolas diferentes. Se a escola privada pode buscar uma qualidade diferenciada, por que a escola pública tem que ser igual para todos, no sentido de ter o mesmo padrão? Então tai a questão que o projeto político-pedagógico tem que ter a cara de cada escola.

Vitor Casimiro
Exclusivo para o Educacional

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